Entrevista com Markus Zusak, autor de A menina que roubava livros
5.2.14
O autor australiano Markus Zusak ficou muito feliz com o resultado da adaptação cinematográfica de sua obra A menina que roubava livros -o que já era de se esperar, tratando-se de um livro tão bom como esse- , que estreiou no Brasil em 31 de janeiro.
Leia a seguir a entrevista com Zusak sobre o processo de escrita e da adaptação da obra para os cinemas:
Por Joe Utichi – www.joeutichi.com
Nascido em Sydney, na Austrália, Markus Zusak é um dos principais autores de literatura jovem do mundo. Seu primeiro romance, O azarão, foi publicado em 1999, e conta a história de um adolescente sem perspectivas e da garota por quem ele se apaixona. O livro levou sete anos para ser publicado, mas seu sucesso imediato deixou claro que Zusak não teria muita dificuldade para lançar os dois romances que eram sequência ao primeiro: Bom de briga e A garota que eu quero.
Em 2002, Zusak publicou Eu sou o mensageiro, uma narrativa em primeira pessoa sobre um taxista de dezenove anos que se vê envolvido em um assalto a banco. O jovem Ed Kennedy é aclamado herói ao, acidentalmente, atrapalhar a fuga dos ladrões. Quando começa a receber pelo correio cartas de baralho com uma série de charadas, a vida de Ed muda para sempre. Eu sou o mensageiro foi eleito Livro do Ano pelo Children’s Book Council of Australia em 2003 e obteve críticas elogiosas mundo afora.
Mas foi seu romance de 2006, A menina que roubava livros ─ sobre uma jovenzinha curiosa, a vida dela na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial e o poder transformador das palavras ─, que proporcionou a Zusak os maiores louvores. Na lista de mais vendidos do New York Times por mais de 375 semanas, o livro conta a história de Liesel Meminger narrada pela própria Morte, e recebeu, entre diversos prêmios, o Printz Honor da American Library Association.
Depois de uma visita ao set de filmagem da adaptação de A menina que roubava livros, no estúdio Babelsberg, na Alemanha, Zusak falou sobre a história e sua transformação em uma grande produção cinematográfica.
Como lhe ocorreu a história de A menina que roubava livros?
Eu não sabia que tinha aquele livro dentro de mim. A melhor maneira de começar a responder à sua pergunta é dizer que cresci em Sydney, que tem, como você pode imaginar, um clima quente e agradável, principalmente no verão. Quando voltávamos para casa depois de jogar cricket, meus pais contavam histórias sobre a guerra, cidades em chamas e prisioneiros judeus famintos. Na época, não percebi, mas acho que foi aquilo que fez de mim um escritor. Meus pais não só conheciam boas histórias, mas também eram excelentes contadores, e ter um pai e uma mãe capazes de fazer isso é muita sorte. Acho que foi aí que o livro surgiu. Eu já tinha escrito quatro outros romances, mas, quando acabei esse, compreendi que era o livro que significava tudo para mim. Quem pode experimentar esse sentimento com relação a pelo menos um de seus livros em toda a carreira é um sujeito de sorte.
Deve ser especialmente gratificante ver que o livro significou tanto para tantas outras pessoas também.
É engraçado; acabei percebendo que o livro tinha vida própria. Lembro-me de tê-lo escrito convencido de que seria meu romance de menor sucesso, mas a coisa foi crescendo, crescendo, crescendo. Quando isso acontece é libertador, porque a gente pensa: “Tudo bem, vou fazer este livro do jeito que eu quero, porque ninguém mais vai lê-lo.” De certa forma, sinto-me muito ligado a ele, mas, por outro lado, tenho a impressão de que ele está apenas circulando por aí, seguindo seu caminho, sem mim. Às vezes é meio surreal que tanta coisa tenha acontecido com esse livro.
E como você se sente agora que ele está se tornando também uma grande produção cinematográfica?
É impressionante entrar naquele set. A primeira sensação que tive foi um alívio imenso por ver que a responsabilidade não era mais só minha. Entendi que sou um sortudo e que não preciso mais me preocupar com aquilo! De repente, minha história está nas mãos de centenas de pessoas, e nas mãos de gente incrivelmente talentosa. Cada vez que me vi diante de uma decisão a tomar enquanto escrevia o livro, segui minha intuição, e passei o tempo todo seguindo minha própria visão da história. Brian, Karen e todos os demais respeitaram isso, mas também trouxeram a visão deles para a narrativa. Nesse sentido, eu não poderia estar mais feliz, e quero que eles façam dessa história sua própria obra. Para mim foi um privilégio visitá-los, e também foi meio estranho, porque agora isso tudo não é mais meu, e sim deles. De certa forma, é completamente diferente. Eu me pergunto por que estou ali, e alguém vai me responder: “Bom, todos nós estamos aqui por sua causa!”
Como você compôs a personagem Liesel?
Em muitos casos, quando se tratam de ideias, tudo acaba sendo pura sorte. Tinha pensado num livro sobre alguém que roubasse livros, uma história que se passasse na Sydney de hoje, e cheguei a escrever a primeira página, mas então meu computador quebrou. Eu tinha escrito sobre uma menina ― sempre foi uma menina ― que subia numa janela e roubava um livro. Por outro lado, sempre tive vontade de escrever sobre os meus pais crescendo na Alemanha e na Áustria durante a Guerra. Acho que é isso que acontece com um escritor, na verdade ─ quando percebe que uma ideia não basta, então junta duas. Misturei a personagem que roubava livros com as histórias de meus pais e comecei a descobrir como as duas se encaixavam. Foi só quando já tinha quatrocentas páginas que compreendi que, ao roubar um exemplar de Mein Kampf, ela está recuperando aquelas palavras e escrevendo sua própria história em meio àquele mundo de devastação. Tudo se mistura. Então me passou pela cabeça a ideia de introduzir a Morte como narradora, e isso também fez sentido. É um pouco como misturar ingredientes numa vasilha e ver se funcionam juntos. Quando começa a dar certo, você não questiona, simplesmente segue em frente. Não estou querendo dizer que não foi difícil escrever o livro, mas o tempo todo havia algo de verdadeiro ali.
Todos os personagens renegam os estereótipos e clichês tão comuns nas histórias sobre a Segunda Guerra Mundial. Até que ponto isso foi um trabalho consciente?
Na verdade, não foi. São pequenos lampejos de coisas que acabamos ouvindo, vendo ou que nos contaram. Algumas das histórias mais importantes que escutei quando era pequeno podem ter sido breves comentários, mencionados despretensiosamente. Minha mãe pode ter dito: “Claro que meu pai não quis pendurar a bandeira nazista na janela no dia do aniversário de Hitler, e minha mãe disse ‘Ótimo, assim eles vão vir atrás de você e boa sorte!’” Portanto, algumas dessas histórias eram bem engraçadas, principalmente as que falavam da extrema pobreza na qual eles viveram depois da guerra e outras coisas do gênero. Meu pai não queria de jeito nenhum entrar para a Juventude Hitlerista. Achava aquilo tudo uma chatice. O que ele queria mesmo era ir para a beira do rio jogar pedras na água junto com os amigos. Até que um dia começaram a chegar cartas dizendo: “Seu filho deve entrar para a Juventude Hitlerista.” A primeira coisa que nos passa pela cabeça não é o fato de isso ser uma perspectiva diferente; a primeira coisa que pensamos é: “Nossa, essa história é bem legal.” Juntando esses detalhes, a gente começa a construir algo bem maior. No caso, esse algo é que nem todos os alemães agiam da forma como vemos em vários documentários, fazendo aquela saudação com o braço estendido. Havia quem se rebelasse contra aquilo. Minha intenção não era ser pioneiro ao dar voz para essas pessoas; já se escreveu sobre isso antes. Eu só queria escrever sobre a vida interessante que elas levavam, e eu esperava que o restante surgisse por si só.
Você tinha em mente um leitor enquanto escrevia o livro?
Na maior parte do tempo, quando estou escrevendo um livro, tento procurar o leitor e dizer: “Venha comigo, avance um pouco mais. Estou aqui com você.” O autor vive tentando agradar o leitor para que ele não o deixe. Chega uma hora, quando o autor já vem trabalhando num livro por meses ou anos a fio, em que simplesmente pensa: “Sabe do que mais, já cansei disso tudo. Se quiser fazer parte deste livro, me acompanhe”. As pessoas que você atinge, então, vão amá-lo para sempre, e acho que tive muita sorte de encontrar leitores que confiam em mim. Quem gosta do livro gosta de verdade, e sou profundamente grato a todos. Acho que a questão é a seguinte: o autor não consegue atingir as pessoas se não se arriscar. Se aprendi alguma coisa, agora que o livro já está circulando há sete anos, é que se um bom número de leitores gosta de você, um bom número não gosta. Não dá para agradar todo mundo, então é melhor fazer as coisas do jeito que quer fazer. Acho que, a princípio, a relação com o leitor é bem aberta, mas depois o autor precisa abrir mão dela um pouco.
Geoffrey Rush está profundamente apaixonado pelo projeto. Como foram as conversas entre vocês?
Foram incríveis. Ele é um sujeito tão interessante… e realmente generoso. É muito receptivo. Ficava me fazendo perguntas o tempo todo. Mencionou duas canções que toca no acordeão e conversamos muito sobre isso. Falamos de todos os pequenos detalhes intricados que ele queria dar ao personagem. Ele pensa que em cada segundo na tela precisa fazer plena justiça ao personagem e torná-lo vivo para o público. Ver esse tipo de dedicação me deixou pasmo. Posso dizer o mesmo de Emily Watson. Sem dúvida foi emocionante vê-la nos degraus da rua Himmel, 33. Na hora ― aliás, é sempre assim ― não me dei conta disso, mas hoje considero que aquele foi um momento incrível.
Rosa não é uma personagem que Emily Watson normalmente interpretaria. É isso que a torna indicada para o papel, na sua opinião?
Assim que vi o nome dela escrito em alguns lugares, pude imaginá-la perfeitamente como Rosa. Depois de vê-la em tantos papéis, a gente sabe que ela pode trazer a profundidade dessa personagem à tona. Acho que todos gostamos de ver algo inesperado, e também a considero uma atriz muito generosa. Lembro-me de ter lhe dito no final: “Obrigado pelo seu trabalho, estou muito empolgado com sua participação no filme.” E ela foi uma graça: me deu um abraço apertado e disse que o prazer era dela. Havia um clima muito bom entre todos ali. E pelo que todos disseram sobre Brian, fiquei com a impressão de que ele é uma pessoa muito boa. Esse tipo de livro precisa de alguém assim para transformá-lo em filme.
Sophie foi um achado. Ela é como a Liesel que você imaginou?
Na verdade, eu a vi no ano passado em Monsieur Lazhar, um excelente filme franco-canadense. Ela estava fantástica no papel e lembro-me de ter dito à minha mulher: “Olhe, essa aí é a Liesel”. Acho que a relação dela com Nico Liersch, que está interpretando Rudy, é maravilhosa. Vê-los correndo juntos, como as crianças que são, é incrível. Quando a gente olha para Sophie, simplesmente não consegue imaginar nenhuma outra atriz fazendo esse personagem; e a mesma coisa acontece com Ben Schnetzner, que faz o papel de Max. Nós o conhecemos, e eu não o vi em nenhuma cena, mas só de olhá-lo atravessando a rua num determinado momento, pensei, “Esse aí é o Max.” Todos se entrosaram perfeitamente.
O livro enfatiza bastante o poder das palavras, mas o filme, evidentemente, é uma mídia visual. A seu ver, isso faz diferença?
Pelo que sabemos, o filme pode destacar ainda mais esse poder. O resultado do set do porão, com todas as palavras pintadas ali, é magnífico. E também, quando a gente vê o elenco, percebe que Geoffrey Rush pode fazer isso em dois segundos só de olhar para alguém. Claro que é um veículo diferente, mas capaz de lançar luz sobre algo que possa ter passado despercebido no livro. No fim das contas, estou me perguntando o que eu queria de fato. Sei que vai ser diferente. Sei que vou procurar certas coisas que faltarão. Mas acho que o filme vai ter a mesma paixão do livro, e acredito que não posso pedir mais do que isso. Creio com certeza que o poder das palavras que está ali na história estará no filme também.
[Retirado: Intrínseca]
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